Protocolo nº 20729, de 10 de agosto de 2017
I – Dos Fatos
O Senhor Coordenador Geral das Câmaras Técnicas, Dr. Jefferson Piva, solicita a avaliação, por esta Assessoria Jurídica, a respeito de “útero de substituição em doadora não aparentada e residente no exterior”, questionando se, apesar de ter sido emitido o Despacho COJUR nº 640/2017, pelo Conselho Federal de Medicina, não encontrando vedação à conduta, não haveria risco quanto à segurança e controle do procedimento e suas consequências, especialmente no caso de a doadora do útero decidir, ao longo da gestação, pela busca de direitos sobre a criança.
A Assessoria Jurídica do CFM analisou o caso sob o prisma da Resolução CFM 2121/2015, apontando que referida norma visa dar segurança à população que necessite utilizar as técnicas de reprodução assistida, com base no princípio do planejamento familiar, da autonomia reprodutiva, no direito à saúde, liberdade, intimidade e dignidade da pessoa humana. Apõe que, em virtude da espécie de filiação ter reflexos no Direito de Família e no Direito Sucessório, a resolução recomenda que a doadora temporária de útero deva pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau apto e que procura, sobretudo, resguardar a criança que será gerada, sendo vedado o caráter lucrativo ou comercial.
O Despacho COJUR nº 640/2017 fundamenta, ainda, que o art. 227, caput, da Constituição Federal, atribui à sociedade o dever de assegurar os direitos das crianças com absoluta prioridade. Aponta, como precedentes, decisões dos Conselhos Regionais dos Estados de São Paulo e de Goiás, nas quais estes autorizaram o procedimento em doadora temporária que não faz parte da família dos solicitantes até o quarto grau, com base na Resolução CFM 2013/2013, desde que não haja vínculo comercial ou qualquer outra vantagem decorrente da relação.
Finaliza não vislumbrando óbice no que tange à doadora temporária de útero ser de origem paraguaia e não residir no Brasil, tendo em vista que a Resolução CFM tem aplicação em todo o território nacional, não havendo proibição na Lei do Estrangeiro no Brasil (Lei 6815/80).
II – Da Fundamentação Jurídica
O Despacho COJUR nº 640/2017 foi emitido em outubro de 2017, quando ainda vigente a Lei 6815/80.
Na presente data, a referida lei encontra-se revogada pela novel Lei de Migração, Lei 13.445/17, que entrou em vigor no último mês de novembro. Nenhum dos diplomas legais federais veda a doação temporária de útero por estrangeiro não residente no Brasil, assim como não faz qualquer referência a procedimentos médicos, salvo permitir a concessão de vistos para tratamento de saúde e garantir direitos fundamentais ao migrante.
Em que pese o entendimento de que não há vedação legal nas normas atinentes aos migrantes, entretanto, ouso divergir no que tange à conveniência de autorizar-se eticamente o referido procedimento.
Não há legislação específica sobre o tema no ordenamento jurídico pátrio, salvo a determinação de filiação constante do art. 1597 do Código Civil.
Tramita, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 115/2015, de autoria do Dep. Fed. Juscelino Rezende Filho – PRP/MA, que se assemelha em muito à Resolução CFM 2121/2015, prevendo, em seu Capítulo V:
Capítulo V
Da Cessão Temporária de Útero
Art. 21. A cessão temporária de útero é permitida para casos em que a indicação médica identifique qualquer fator de saúde que impeça ou contraindique a gestação por um dos cônjuges, companheiros ou pessoa que se submete ao tratamento.
Art. 22. A cessão temporária de útero não poderá implicar em nenhuma retribuição econômica à mulher que cede seu útero à gestação.
Art. 23. A cessionária deverá pertencer à família dos cônjuges ou companheiros, em um parentesco até 2º Grau.
Parágrafo único. Excepcionalmente e desde que comprovadas a indicação e compatibilidade da receptora, será admitida a gestação por pessoa que não seja parente do casal, após parecer prévio do Conselho Regional de Medicina.
Art. 24. Em todos os casos indicados, a cessão temporária de útero será formalizada por pacto de gestação de substituição, homologado judicialmente antes do início dos procedimentos médicos de implantação.
Parágrafo único. São nulos os pactos de gestação de substituição sem a devida homologação judicial, considerando-se, nesse caso, a mulher que suportou a gravidez como a mãe, para todos os efeitos legais, da criança que vier a nascer.
Art. 25. A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
Art. 26. Para que seja lavrado o assento de nascimento da criança nascida em gestação de substituição, será levado ao Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais o pacto de substituição homologado, juntamente com a comprovação do nascimento emitida pelo hospital, declaração do médico responsável pelo tratamento descrevendo a técnica empregada e o termo de consentimento médico informado. (grifei)
Verifica-se que o referido projeto limita ainda mais a possibilidade doação temporária de útero, exigindo o parentesco máximo até o segundo grau. Propõe, ainda, que os casos excepcionais sejam analisados submetidos a parecer prévio dos Conselhos Regionais de Medicina.
O PL 115/2015 encontra-se em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça desde 04/3/2015. Logo, a normatização existente na presente data a ser seguida é a Resolução CFM nº 2121/2015.
E a Resolução CFM 2121/2015, no Capítulo VII – I – SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO), determina que:
3- Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações deverão constar no prontuário do paciente:
(…)
3.5. Garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez; (grifei)
Ocorre que, por outro lado, a Lei 13.445/17 garante ao Migrante de qualquer natureza:
Art. 4o Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:
(…)
XV – direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; (…) (grifei)
Logo, não há qualquer restrição à doadora temporária de útero estrangeira no que tange a deixar o país a qualquer momento, ainda que portadora do feto de origem biológica diversa da sua.
Consectário lógico é que, s.m.j., não será possível cumprir o item 3.5. da Resolução CFM 2121/2015. Tal ocorre porque, tendo a doadora temporária de útero liberdade de ir e vir e deixar o país a qualquer momento, e sendo de nacionalidade diversa da brasileira, estando gestante, em tese, não há qualquer garantia aos pais biológicos e à própria criança de que esta terá a filiação genética confirmada legalmente e sequer há garantia de cidadania brasileira à criança.
Não houve a aprovação do PL 115/2015, que prevê, em seu art. 24: “Em todos os casos indicados, a cessão temporária de útero será formalizada por pacto de gestação de substituição, homologado judicialmente antes do início dos procedimentos médicos de implantação”.
Assim, não há exigência legal para a formalização do pacto via judicial.
De outra sorte, havendo a liberdade da estrangeira de deixar o país, será essa alcançada pela legislação de seu país de origem ou do país para onde migrar.
E neste ponto, irrelevante a análise sobre a legislação específica do país estrangeiro, pois a questão deve ser analisada de forma genérica, aplicável a estrangeira de qualquer nacionalidade, tendo em vista o princípio da não discriminação, até mesmo porque o Estado Brasileiro não tem qualquer ingerência legislativa nos demais países. Logo, ainda que o país de origem da estrangeira possua legislação garantidora do interesse dos pais biológicos ao início do processo de Reprodução Assistida, tal legislação ser modificada até o final da gestação.
Ante a inexistência de lei federal e ante a excepcionalidade da situação, tenho que a análise deve ser feita sob o prisma constitucional brasileiro.
Consoante fundamentado no Despacho COJUR nº 640/2017, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, caput, atribui à sociedade o dever de assegurar os direitos das crianças com absoluta prioridade.
E a criança, in casu, teria direito à filiação pelos pais biológicos, questão que pode até mesmo ser objeto de discussão judicial, mas pelas leis brasileiras, no Poder Judiciário brasileiro, e com igualdade de condições entre as partes litigantes – o que é garantido, no Brasil, pela existência de Defensoria Pública, e o que não se pode garantir exista nos demais países.
Mas a criança teria, antes de tudo, direito a ter a cidadania brasileira e ser protegida não apenas pela sociedade, mas pelo Estado Brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 veio impor, ao sistema jurídico pátrio a garantia de direitos fundamentais, tornando-os cláusula pétrea. A Carta Magna determina:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana; (grifei)
(…)
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(…)
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
(…)
II – prevalência dos direitos humanos;
Ao cidadão brasileiro e aos estrangeiros residentes no território nacional serão garantidos os direitos fundamentais previstos na CF/88, incluindo-se a igualdade entre os sexos, a livre manifestação do pensamento, o livre exercício de cultos religiosos e a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.
Autorizando-se a doação temporária de útero em estrangeiro, não será possível garantir esses direitos à criança, mesmo sendo estrangeiro residente no país, tendo em vista a possibilidade de emigração desse.
A legislação aplicável à nacionalidade, no caso de a eventual doadora de útero deixar o Brasil, vai depender das normas de seu país de origem, ou do país para o qual migrar, não tendo, os pais biológicos, nenhum controle sobre a gestante e tendo controle extremamente dificultado sobre o bebê após o nascimento, dependendo da legislação estrangeira, que pode determinar a nacionalidade pelo sangue ou pelo território.
E a Constituição Federal Brasileira também rege a proteção à família:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
(…)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Da mesma forma, não há garantias de que a legislação exótica proteja direitos de pais biológicos, ou que os proteja no caso de união estável, ou até mesmo resultantes de união homoafetiva, situação familiar sedimentada pela jurisprudência pátria com fundamento na Constituição Federal.
E a Constituição vai além:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifei)
No Brasil, outrossim, o casamento é autorizado a partir dos 16 anos de idade, salvo exceção prevista no art. 1520 do Código Civil (“para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.”), mas sempre voluntário, proteção inexistente em diversos outros países.
Novamente, autorizar artificialmente a reprodução de pais/mães brasileiros de forma a sequer se poder garantir a cidadania brasileira à criança e os direitos e as proteções legais e constitucionais aqui existentes, parece, s.m.j., temerário.
Verifica-se que, sob o prisma constitucional, não é recomendável a autorização excepcional de reprodução assistida com doadora temporária de útero estrangeira.
As questões acima suscitadas são aplicáveis tanto às estrangeiras residentes como àquelas que estão em território nacional sem esta autorização de residência. E são aplicáveis também a brasileiras, que gozam do mesmo direito de ir e vir e deixar o país.
Ocorre que a autorização legal existe para parentes consanguíneos até o quarto grau. Analisa-se aqui a excepcionalidade.
A doadora brasileira tem um vínculo com o Brasil, no mínimo pela própria nacionalidade. E, conforme a legislação brasileira, ainda que nascida fora do país, a criança nascida de brasileira (caso a doadora temporária brasileira adquira o direito ao registro como mãe) teria direito à cidadania brasileira, o que não ocorreria no caso de doadora de útero estrangeira que tenha deixado o Brasil antes do parto.
A estrangeira residente possui, assim, vínculo mais frágil com o Brasil, pois poderia sair do país e, da mesma forma, impedir o registro da criança como brasileira.
A estrangeira que sequer residência fixou em nosso território, mais fugaz vínculo tem.
Assim, tratando-se de exceção a procedimento que, por si, cria riscos para os pais/mães biológicos e, especialmente, vai gerar – artificialmente – uma criança que pode ser posta em risco pelos fatores acima apontados, a cautela deve gerir as decisões.
Retornando à Resolução CFM 2121/2015, esta é peremptória, em seu Capítulo VII:
1 – As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 – A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. (grifei)
A inexistência de vínculo familiar dos pais/mães biológicos com a doadora temporária de útero deve ser analisada como prevista – como uma exceção.
E, na exceção, reitere-se, a cautela deve preponderar.
Não havendo o laço sanguíneo previsto como regra, há que se analisar outros vínculos existentes entre os pais/mães biológicos e a doadora de útero, exatamente para se investigar a inexistência de relação comercial/financeira. E questionar-se, não havendo vínculo sanguíneo, ou afetivo de alguma natureza, qual a relação existente que levaria a doadora a emprestar seu útero para uma gestação – que sempre oferece os riscos inerentes?
Em se tratando de exceção, o critério de análise deve ser mais rígido.
III – Da Conclusão
Diante do exposto, opino pela necessidade de extrema cautela na análise de pedidos de reprodução assistida com doação temporária de útero nos casos de exceção ao regramento constante na Resolução CFM 2121/2015, entendendo que a reprodução assistida, que gerará artificialmente uma criança a quem não se possa garantir sequer a cidadania brasileira deve ser objeto de solicitação de reanálise pelo Conselho Federal de Medicina, acostando-se a presente Nota Técnica, caso assim entenda a Diretoria do CREMERS.
Porto Alegre, 08 de dezembro de 2017.
Juliano Lauer,
Coordenador Jurídico do CREMERS,
OAB/RS nº 90.479A.
Carla Belo Fialho Cirne Lima,
Advogada do CREMERS,
OAB/RS nº 50.656.