Referente ao PL 280/17 – Senado Federal
I – Dos Fatos
A Diretoria do CREMERS encaminha a esta Assessoria Jurídica o PL 280/2017, de autoria do Senador Antonio Anastasia, que Estabelece diretrizes e requisitos para a delegação, no âmbito da Administração Pública Federal, do serviço público de fiscalização administrativa a particulares para emissão de parecer e posterior encaminhamento ao Conselho Federal de Medicina.
O PL 280/17 considera a delegação do serviço público de fiscalização administrativa a particular como :
transferência a pessoa jurídica não estatal, de direito privado, mediante autorização legal específica, do exercício de atividade de licenciamento, de vigilância ou sancionatória, mantida a titularidade estatal e preservado o regime jurídico de direito público, tendo em vista o interesse público disposto em lei;
E define atividade de licenciamento, de vigilância e sancionatória como:
IV – atividade de licenciamento: realização de processos administrativos e edição de atos administrativos, previstos em lei em razão do interesse público, destinados a expedir licenças, autorizações, certificações ou atos equivalentes, quanto a produtos, empreendimentos ou atividades;
V – atividade fiscalizatória: medidas que verifiquem a correta ou incorreta atuação daqueles que se submetem às normas legais ou regulamentares de regulação, em relação a fatos já ocorridos, sem espaço para juízo discricionário;
VI – atividade sancionatória: imposição de determinada consequência desfavorável, prevista em lei, a alguém em razão do cometimento de ilícito administrativo, sem espaço para juízo discricionário.
O texto pode, s.m.j., ser interpretado como extensivo à fiscalização das profissões regulamentadas, tendo vista a inexistência de exceção legal no projeto de lei.
Tratando-se a fiscalização das profissões regulamentadas de serviço público de fiscalização administrativa, existe a possibilidade de tal interpretação, o que é corroborado pela menção, na Justificação, de referência à ADI 1717/STF, que analisou e decidiu sobre a natureza pública dos Conselhos de Fiscalização Profissional.
Assim, necessária a análise sobre a constitucionalidade do referido projeto de lei.
II – Da Fundamentação Jurídica
O PL 280/17 prevê a delegação do poder fiscalizatório da Administração Pública a particulares sob a justificativa de que:
por mais que o Direito brasileiro se baseie em um texto constitucional analítico e extenso, não se pode esperar que a Lei Maior regule com minudencia todas as possibilidades de atuação estatal e sua relação com os cidadãos. Ademais, a Constituição não tratou de forma sistematizada a delegação de competências públicas a entidades de direito privado. Todavia, diversos dispositivos constitucionais promovem delegação de competências públicas, seja por meio de cláusulas gerais, seja mediante cláusulas setoriais.
(…)
Não se pode apontar, contudo, a existência de fundamento constitucional que determine a obrigatoriedade de expressa previsão no texto constitucional da possibilidade de delegação do serviço público de fiscalização administrativa.
Por esse motivo, a legislação infraconstitucional pode, sim, estabelecer hipóteses de delegação do serviço público de fiscalização administrativa. É de se registrar, nesse sentido, que a lei ordinária pode, alternativamente, vedar taxativamente a delegação de serviço público de fiscalização administrativa em determinado âmbito, se essa for a expressão política do Estado em dado momento.
(…)
Oportuno registrar que recente tese de doutoramento produzida na UFMG/MG cuidou do tema e corrobora tal conclusão (…)
No estudo, também foi examinada a jurisprudência pátria, em especial a ADI 1717 em que o STF, embora tenha feito alusão à indelegabilidade do poder de polícia administrativa, não considerou diversos fundamentos pela viabilidade desse transpasse. Também se analisou o Recurso Especial nº 817.534/MG em que o STJ delimitou a discussão sobre a delegação do poder de polícia administrativa, dividindo seus aspectos em quatro vertentes, (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção e concluiu que [s]omente o atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público
O RESP nº 817.534/MG trata da possibilidade de delegação dos atos de consentimento e fiscalização, mantendo, como exclusivos da Administração Pública, os atos de legislação e sanção. Tal decisão é referente à fiscalização de trânsito por sociedade de economia mista, não se tratando de situação similar às dos Conselhos de Fiscalização Profissional.
A ADI 1717 é referida como analisada na tese de doutoramento do Dr. Flávio Henrique Unes Pereira, Regulação, Fiscalização e Sanção: Fundamentos e requisitos da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares, tese utilizada como justificativa para o projeto de lei em tela.
No texto do projeto de lei, há o apontamento de que a referida tese entenderia que, na ADI 1717, o Supremo Tribunal Federal não teria considerado diversos fundamentos pela viabilidade do trespasse do poder de polícia administrativa ao particular, por delegação.
Todavia, em que pese o entendimento exposto na tese de doutoramento e a justificativa existente no Projeto de Lei 280/17, tenho por sua inconstitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal, na ADI 1717, já sedimentou a natureza jurídica de autarquia federal dos Conselhos de Fiscalização Profissional e a indelegabilidade do poder de polícia der fiscalização das profissões regulamentadas a particulares, ao analisar a Lei nº 9649/98, que, em seu art. 58, previa:
Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 1o A organização, a estrutura e o funcionamento dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas serão disciplinados mediante decisão do plenário do conselho federal da respectiva profissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos regionais. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 2o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotados de personalidade jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 3o Os empregados dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são regidos pela legislação trabalhista, sendo vedada qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta.
§ 4o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas e jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que constituirão receitas próprias, considerando-se título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes. (Vide ADIN nº 1.717-6).
§ 5o O controle das atividades financeiras e administrativas dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas será realizado pelos seus órgãos internos, devendo os conselhos regionais prestar contas, anualmente, ao conselho federal da respectiva profissão, e estes aos conselhos regionais. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 6o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, por constituírem serviço público, gozam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 7o Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas promoverão, até 30 de junho de 1998, a adaptação de seus estatutos e regimentos ao estabelecido neste artigo. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 8o Compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, quando no exercício dos serviços a eles delegados, conforme disposto no caput. (Vide ADIN nº 1.717-6)
§ 9o O disposto neste artigo não se aplica à entidade de que trata a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994.
A simples leitura do caput do art. 58 da Lei nº 9649/98, declarado inconstitucional, para se verificar a incompatibilidade do art. 1º do PL 280/17 com a decisão do STF, ao dispor: Art. 1º Esta Lei estabelece diretrizes e requisitos para a delegação, no âmbito da Administração Pública Federal, do serviço público de fiscalização administrativa a particulares.
2. Na inicial, os autores sustentaram, em síntese, que os textos questionados implicam violação aos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21 XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal
Na ADI 1717, ao relatar o feito, o eminente Relator, Min.. Sydney Sanches, transcreveu a decisão do Plenário quanto ao pedido de medida cautelar, da qual se extrai o seguinte trecho:
Com efeito, não parece possível, a um primeiro exame, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais.
5. Precedente: M.S. no 22.643.
E o Relator prossegue, apontando sua manifestação quando do julgamento do MS nº 22643:
16. Mas o que importa é que a própria delegação do serviço a entidade privada não se mostra compatível com a Constituição, pelo que já ficou exposto. É claro, sempre a um primeiro exame.
E a fundamento do Eminente Relator para a procedência da ADI 1717 é embasada ainda na Promoção da Procuradoria Geral da República, que assim restou assentado:
10. No exame do caput do art. 58, ora impugnado, vê-se que foi alterada a natureza jurídica dos Conselhos Profissionais, encarregados dos serviços de fiscalização de profissões regulamentadas. Antes pessoas jurídicas de direito público, assim caracterizados em seus Estatutos, passam a configurar pessoas jurídicas de direito privado, que, por meio de delegação, desenvolvem uma atividade típica de Estado, a qual, por força do art. 21, XXIV, da Constituição, é de competência da União Federal. O § 2° do mesmo artigo, dando reforço ao caput, especifica que os conselhos de fiscalização detêm natureza jurídica de direito privado, sem qualquer vinculação funcional ou hierárquica com os órgãos da Administração Pública.
11. Já no § 4º, os referidos conselhos são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como preços de serviços e multas, as quais constituem receitas próprias.
12. Ocorre que essas contribuições possuem caráter tributário, ou seja, são tributos, de competência da União Federal, não parecendo possa, em face do art. 119 do CTN, a capacidade de ser sujeito ativo da concernente obrigação tributária ser delegada a ente dotado de personalidade jurídica de direito privado.
13. Com efeito, o art. 119 do CTN é claro ao estabelecer que: sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento.
14. Assim, tendo sido o art. 119 do CTN recepcionado pela Constituição Federal, não poderia a lei ordinária modificá-lo, pois, para tanto, é necessário lei complementar, nos termos do art. 146, III, da Constituição.
Vê-se que foi analisada a possibilidade de delegação da atividade fiscalizatória sobre as profissões regulamentadas, sendo declarada inconstitucional a previsão legal.
De sorte que, ainda que o Ilustre Senador entenda que o Supremo Tribunal Federal, na ADI 1717, não analisou todos os aspectos atinentes ao tema, não restando claro quais seriam estes aspectos não analisados, tem-se que o STF analisou suficientemente a matéria de modo a afastar a constitucionalidade de lei federal que determinava a natureza privada da fiscalização das profissões regulamentadas, declarando inconstitucional a delegação do poder de polícia em relação às profissões regulamentadas, o que é suficiente para se concluir pela inconstitucionalidade também do PL 280/17.
Assim, ainda que fosse aprovado o PL 280/17 e sancionada a lei, a interpretação constitucionalmente correta seria a de que a nova lei federal não seria aplicável à fiscalização das profissões regulamentadas.
Ocorre que, antes da aprovação do PL 280/17, não há a possibilidade de provocação do controle jurisdicional de constitucionalidade material, por se tratar de projeto de lei. Nesse sentido:
CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é a legitimidade do parlamentar – e somente do parlamentar – para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04).
Há, entretanto, lugar para a provocação do próprio Poder Legislativo, através dos Parlamentares, individualmente, ou da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Tais medidas, todavia, tratando-se de projeto de lei federal, deverão ser tomadas, se assim entender, pelo Conselho Federal de Medicina.
III – Da Conclusão
Diante do exposto, opino pela inconstitucionalidade do Projeto de Lei 280/17, de autoria do Senador Antonio Anastasia, e pelo encaminhamento da presente Nota Técnica, caso aprovada, ao Conselho Federal de Medicina para análise e providências, se assim entender.
Porto Alegre, 12 de janeiro de 2018.
Dra. Carla Bello Fialho Cirne Lima
Advogada do Cremers
OAB/RS 50.656