
Confira o artigo do vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade, publicado no jornal O Estado de São Paulo desta quarta-feira (22):
Abrir cursos de Medicina para saciar interesses comerciais é brincar com vidas
Todo político quer uma faculdade de Medicina para chamar de sua. O curso vai ser bom? Ora, que importa?
Mesmo compreendendo que um curso de Medicina não vai garantir atendimento, mesmo sabendo que a formação em escolas caça-níqueis vai comprometer o futuro da profissão, o povo quer. Uma cidade com faculdade de Medicina deixa de ser um município e torna-se um Município. Traz prestígio, garante voto, é uma justificativa para que o deputado da região destine emendas.
E não é esse, no frigir dos ovos, o objetivo? Dinheiro? Sejamos francos, já passou da hora de nos despirmos de eufemismos e vernizes que embaçam o duro posicionamento que se faz necessário. Um curso de Medicina é uma mina de ouro para qualquer universidade, especialmente as privadas. Não é pelo bem da população, não é pela democratização do ensino, não é para levar profissionais a rincões distantes. Nunca foi.
Ter um “doutor” na família sempre foi motivo de orgulho. O pai, de peito inflado, diz “meu filho é doutor” como quem revela ter ganhado na loteria. A mãe se emociona na formatura, que hoje em dia ganhou ares de espetáculo, imaginando o futuro brilhante de seu “filho doutor”. E a família sonha, claro, com o retorno de seu pesado investimento em uma faculdade regiamente paga que, agora, entrega o produto “filho doutor”. Que bom que ele conseguiu aquela vaga pouco disputada em um curso sabe-se lá onde. Agora é “doutor”. Mas será que é médico?
Vivemos em um tempo em que tudo se tornou produto, portanto, tudo pode ser comprado. Inclusive um diploma de médico. Não importa se há vocação, se há equívoco, se quem entra no curso vai ter a mínima condição de atender um paciente. O produto foi comprado e será entregue. A qualidade será atestada lá na frente, pelos pacientes que sobreviverem na mão de profissionais formados de qualquer jeito.
Caiu no esquecimento que ser médico é atender a um chamado. É colocar-se ao lado de quem sofre. Vai além de gostar de gente: tem que gostar de gente com dor, fragilizada, que sofre; e ansiar por remediar esse sofrimento. É imperativo que o médico ame o ser humano em todas as suas possibilidades, por dentro e por fora, com odores e fluidos, e que nada disso o faça furtar-se de colocar as mãos no paciente, de lidar com a família, de ter sabedoria para tomar decisões. É servir.
Sabemos que 80% dos municípios que abrigam escolas médicas no Brasil não cumprem as condições mínimas para o funcionamento do curso: ter, pelo menos, cinco leitos públicos para cada aluno; incluir, no máximo, três alunos em cada equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF); e ter, ao menos, um hospital de ensino ou unidade hospitalar “com potencial para hospital de ensino”. Faculdade não fixa o médico no interior, onde não há rede de suporte nem referências. Ainda mais médicos inexperientes e mal formados.
Extremamente mal formados. Como algumas instituições têm coragem de abrir novas vagas quando deixam seus alunos sem aulas práticas? Quando acadêmicos de cursos antigos pedem socorro por não terem cadeira de clínica médica? Se até universidades tradicionais, públicas, têm dificuldade em encontrar professores qualificados, quem vai dar aula nas uniesquinas?
E a população teria coragem de se colocar aos cuidados de um formado em Medicina — pois médico não é — que jamais atendeu um paciente durante toda a graduação?
Não estamos falando apenas de estrutura física, note-se bem. A formação ética, a conduta humanista e a relação médico-paciente são basilares para um bom médico. Especialmente hoje, em que temos tantos aplicativos, tecnologias, inteligência artificial e outros meios que “pensam” pelo profissional. É fácil ensinar um jovem a ler manuais e manusear equipamentos; difícil é ensinar o olho no olho, a anamnese, a presença que consola e vê a pessoa à sua frente, não apenas a doença.
No entanto, há coisas que nunca mudam. A qualidade de um profissional é reflexo de sua formação e de seu empenho. Uma faculdade que não oferece a primeira e não estimula o segundo apenas despeja problemas por suas portas. Mais adiante, o preço da precaríssima formação médica será cobrado — e não em reais, mas em caixões.
O Ministério da Educação não pode continuar agindo como um balcão de negócios. Precisa retomar seu papel como órgão regulador e fiscalizador da formação médica. O Brasil não precisa de mais escolas de Medicina — precisa fechar aquelas que não atendem aos critérios mínimos de qualidade. Não faltam médicos, mas estrutura adequada para garantir uma formação responsável e um sistema de saúde digno para a população. Abrir cursos de Medicina para saciar interesses comerciais é brincar com vidas.
Há muitos anos, um político disse: “Para mim, médico é como sal: branco, barato e eu encontro em todo o lugar”. Se esse indivíduo visse o que se tornou a mão de obra médica, cada vez mais abundante e desvalorizada, com aventais impecavelmente alvos desde a cerimônia do jaleco na graduação, teria estertores de contentamento. Não quero acreditar que uma visão tão vil possa prevalecer.